quarta-feira, 11 de maio de 2016

Guerra e Economia na Grécia dos Períodos Arcaico e Clássico

por Heloísa Vidal*

A guerra fazia parte do cotidiano na Grécia antiga. Tal constatação não é nova: historiadores desde Tucídides informaram ao mundo atual as práticas militares na antiguidade e grande parte dessas informações foi comprovada por historiadores modernos e arqueólogos. Considerar a própria guerra em si como um objeto de estudo é algo bastante tradicional dentro da historiografia. O tema, contudo, não se esgota: surgem novas abordagens e perspectivas teóricas possíveis para o estudo da guerra e de outras dimensões da vida na Grécia Antiga, sobretudo após o revisionismo histórico surgido a partir das contribuições de Edward Said, na década de 1970, com seu livro Orientalismo, e de Martin Bernal, na década de 1980.

Este ensaio, entretanto, não tratará, como Said ou Bernal, de questões relativas aos discursos de poder elaborados no meio acadêmico ou aos usos do passado em nosso tempo. A proposta, neste trabalho, é mais simples e não é inédita: pensar, a partir das fontes históricas e da bibliografia utilizadas, se a guerra era empreendida, entre outros interesses, com finalidades econômicas, ou se a guerra era um meio econômico per se. A análise partirá do período arcaico e chegará ao período clássico, estendendo-se até a Guerra do Peloponeso (431-404 AEC.).



Migração e colonização na Grécia Arcaica
O Período Arcaico corresponde à época compreendida entre 800 e 500 AEC. Nesse período, não ocorreram guerras de grandes proporções, porém os conflitos envolvidos nos movimentos de migração e colonização merecem atenção. Segundo Moses Finley, ocorreram dois movimentos de colonização: o primeiro, antes de 750 AEC., ocorreu em direção ao Ocidente - para o sul da Itália e Sicília, a Líbia (norte da África) e o sul da França; o segundo movimento ocorreu por volta de 650 AEC. e dirigiu-se para a Trácia e para o Oriente (costa do mar de Mármora e do Mar Negro) (Finley, 2002, p. 33-34). Segundo o autor, essas colonizações ocorreram porque, em algum momento, as comunidades tiveram problemas demográficos ou agrícolas e precisaram se fixar em locais com terras férteis e boas condições geográficas. (Finley, 2002, p. 34). Isso ocorria, de acordo com Tudídides, antes do Período Arcaico e desde o início da formação da Hélade, quando ainda nem havia fluxos comerciais e os povos migravam constantemente para outras regiões em busca de terras cultiváveis (I, 1, 2). Nos séculos VIII e VII AEC., Esparta entrou em guerra com a Messênia para conquistar terras férteis. Os espartanos precisavam de terras cultiváveis para as famílias dos soldados, pois os homens se dedicavam exclusivamente à guerra e, assim, o Estado lhes garantia uma propriedade onde sua família tivesse condições de se manter (Rostovtzeff, 1977, p. 94) Na Grécia Anatólia (Ásia Menor), os gregos elevaram o nível do comércio, o que resultou em aumento da população e falta de alimentos para suprir essa “massa” que foi se instalando nas colônias. Isso os levou a colonizarem outras regiões com condições propícias à produção de cereais e à pesca (Rostovtzeff, 1977, p. 80).

A sobrevivência e o abastecimento, entretanto, parece não ter sido a única motivação para a colonização. Rostovtzeff argumenta a respeito de uma “revolução econômica” dos séculos VII e VI AEC, na qual surgem grandes proprietários ambiciosos que deixam de produzir cereais e se dedicam à produção de vinho e azeite, negócio mais próspero (1977, p. 82). Extensas propriedades agrícolas e larga produção exigem grandes quantidades de escravos. Aliado à necessidade de mão-de-obra, o crescimento relativamente acelerado do comércio e da navegação estimulou a luta pelo estabelecimento de mais colônias (Rostovtzeff, 1977, p. 83) Assim, gradativamente, a colonização, que inicialmente estava voltada para a sobrevivência, adquire um caráter mais econômico, voltado para a manutenção dos mercados. O cultivo da terra deixa de estar voltado apenas para a comunidade que nela habita e passa a fornecer produtos para outras cidades. A invasão de outras regiões ocorre não apenas pela busca de terras férteis, mas pela busca de escravos.

Logo após Sólon se tornar arconte em 594 AEC., Atenas lutou com Mégara pela posse de Salamina e pelo domínio comercial da Grécia. Para vencer essa guerra, Atenas agiu de maneira semelhante à Esparta com seus vizinhos no Peloponeso: cooptou a aliança das cidades gregas da Ática e usou esses aliados para ampliar o território ateniense – esse já era um primeiro “mal estar” no qual Esparta, como líder do Peloponeso, começara a se incomodar com a liderança de Atenas, uma tensão que perpassa a guerra contra os persas e desemboca na Guerra do Peloponeso (Rostovtzeff, 1977, p. 106). Além da busca por grandes extensões de terras cultiváveis e por escravos, a guerra entre Atenas e Mégara indica que os conflitos nessa época não obstante eram travados visando também interesses comerciais.

Contudo, é preciso tomar cuidado com a dimensão dos interesses econômicos e comerciais em relação aos conflitos na antiguidade. A economia não era uma “categoria autônoma”, estava submetida à política, que usava a guerra como instrumento para atingir diferentes objetivos (Finley, 2002, p. 55 e Austin & Vidal-Naquet, 1986, p. 114). Assim, mesmo que houvesse finalidades econômicas e a própria guerra resultasse em muitas riquezas, tudo girava em torno da política e do poder, e os principais motivos para a guerra estavam sempre relacionados à esfera política. Pode-se concluir então que, no Período Arcaico, embora fosse uma maneira de adquirir bens e riquezas, a guerra não era um meio para as cidades sustentarem sua economia, baseada sobretudo na agricultura, mas enriquecida com exploração de metais, ou com a pesca, por exemplo. No entanto, é impossível não notar que havia a possibilidade de surgirem motivações econômicas em meio a interesses de outras ordens quando se empreendia uma guerra ou qualquer conflito menor. E, mesmo que nem houvesse diretamente um emprenho estritamente econômico, a guerra acabava de alguma forma favorecendo o vencedor materialmente/economicamente.



Guerra e Império na Grécia Clássica
A questão do poder e da política como motivações principais para a guerra fica ainda mais evidente nas duas grandes guerras ocorridas no Período clássico: as Guerras Médicas e a Guerra do Peloponeso. Em ambos os casos, é preciso ter ainda mais cuidado para não confundir causas econômicas da guerra com ganhos materiais proporcionados por ela. Na verdade, nenhuma das duas guerras foi causada por motivações econômicas. De maneira geral, no caso das Guerras Médicas, os persas atacavam a Grécia e suas colônias movidos pelo seu desejo de dominação e expansão do Império, enquanto os gregos guerreavam pela defesa de sua liberdade (Austin e Vidal-Naquet, 1986, p. 27). Por outro lado, considerando eventos particulares inseridos na guerra – batalhas, invasões, acordos entre cidades – o conflito demonstra ter aspectos econômicos: gregos e persas poderiam ambos enriquecer com pilhagens no território inimigo, por exemplo, e, no caso das ligas (de Delos e do Peloponeso) que defenderam a Hélade contra os persas, as coligações sustentaram a economia de guerra, fornecendo dinheiro, frotas e soldados.

A formação da Liga do Peloponeso antecedeu a guerra contra os persas. Firmada no século VI a.C. sob a liderança de Esparta, fazia parte de uma política de conquista  pela hegemonia no Peloponeso. Esparta firmou alianças com as cidades de Messênia, Arcádia, Élida, Argólida, Sicião e Corinto, chegando mesmo a entrar em conflito com algumas delas. Entretanto, esse domínio espartano tinha fins militares e políticos: o objetivo era o reconhecimento de sua superioridade militar e o controle político da região. Esparta era a única cidade grega que tinha um exército permanente e garantia a segurança em tempos de ameaça de invasão (Rostovtzeff, 1977, p. 96)

A Liga de Delos era uma coligação de cidades formada durante as guerras médicas, sob a liderança de Atenas. Diferentemente da Liga do Peloponeso, também tinha uma função econômica: fornecer recursos materiais para a guerra contra os persas. O centro administrativo da Liga ficava em Delos. A organização e disciplina da Liga conseguiram afastar a ameaça de invasão persa, porém quando o perigo já havia passado, as cidades quiseram se livrar do domínio ateniense e não conseguiram. Atenas converteu a Liga em um império e suprimiu as tentativas das cidades de se libertarem do seu domínio, pois ainda se sentia ameaçada pelos persas. Além disso, queria manter o domínio marítimo a partir da imensa frota que adquiriu dos estados-membros. O tesouro da Liga foi transferido de Delos para Atenas em 454 AEC. (Rostovtzeff, 1977, p. 156). Embora descontentes por estarem sujeitos ao domínio ateniense, os estados-membros da Liga gozavam de vantagens econômicas e de segurança no mar para os comerciantes. (Rostovtzeff, 1977, p. 162)

O que Atenas fez com a Liga de Delos reflete a política expansionista de Péricles, que fez da cidade-estado, simultaneamente, uma democracia e uma potência imperial (Rostovtzeff, 1977, p. 157). Atenas foi a única que conseguiu acumular uma reserva monetária a partir da Liga, algo que não era comum, pois os gregos gastavam o seu rendimento (Finley, 2002, p. 54-55). O poder do Império Ateniense não demorou a incomodar seus vizinhos, dos quais Esparta demonstrou ser o mais incomodado. Havia uma intensa rivalidade comercial com Egina e com Corinto, que impediu a participação de Atenas no comércio de cereais da Itália e Sicília. Em resposta a essas restrições comerciais, Atenas subjugou a Beócia, Egina e Mégara, enfraquecendo Corinto, o que atingiu os interesses espartanos, que dependiam dos produtos da Itália e da Sicília. Atenas competia com Corinto e Mégara pelos mercados na Itália e na Sicília. O aumento de importações atenienses levaria a exportação dos produtos italianos e sicilianos – milho, gado e metais – exclusivamente para o Pireu, porto de Atenas, que assim dominaria o comércio e a política no norte e oeste do Peloponeso. Isso preocupava Esparta e as cidades aliadas, pois não produziam o suficiente para manter sua população e dependiam dos produtos do Ocidente. (Rostovtzeff, 1977, p. 163).

Atenas foi derrotada no conflito com Esparta, ocorrido entre 459 e 447 AEC. Firmou-se um acordo de paz, mas um futuro conflito entre as duas potências gregas já se delineava. Tucídides afirmou que “o aumento do poderio de Atenas, e o alarme que isso inspirava em Esparta, tornaram a guerra inevitável” (Tucidides, I, 23,6 apud Finley, 2002, p. 55). A Guerra do Peloponeso eclodiu em 431 e terminou em 404 AEC., com a “inexplicável” derrota de Atenas. Mesmo abatida pela peste, que atingiu a cidade em 430 e matou Péricles, Atenas era forte e conseguiu prolongar a guerra initerruptamente até que, em 406, uma tempestade afundou a frota ateniense em Arginusas. As perdas foram muitas e os generais foram destituídos de suas posições, causando uma crise de chefia (que, na verdade, se instalara desde a morte de Péricles) e falta de ânimo para continuar a guerra (Rostovtzeff, 1977, p. 171). Mesmo assim, foi por pouco que Esparta venceu a guerra. Mesmo após a morte de Péricles e diante de inúmeras adversidades, Atenas surpreendia no desfecho das batalhas. O Império Ateniense foi dissolvido depois da guerra e Esparta tentou, sem sucesso, construir seu próprio império em cima das ruínas do que pertencia a Atenas. Esparta não tinha os recursos da sua rival e a situação beirou ao caos: as cidades-estados continuavam se odiando e agonizando com problemas internos, algumas colônias na Ásia Menor voltaram ao domínio persa e instalou-se um “vazio de poder” na Grécia que só foi preenchido, tempos depois, com o domínio macedônio (Finley, 2002, p. 61).

A partir da análise desenvolvida até aqui, conclui-se que a guerra na Grécia Antiga podia ser motivada por causas variadas, mas estavam sujeitas de alguma forma à política. O poder marítimo era motivo de grande preocupação e envolvia questões econômicas e comerciais, por isso a economia estava sempre inserida nos conflitos no mundo antigo, mesmo que não fosse diretamente a causa dos mesmos. As cidades costeiras eram saqueadas com mais frequência, adquiriam-se escravos em regiões distantes – transportados então pelo mar, bem como mercadorias e alimentos. Poder e política eram, sem dúvida, o leitmotiv da guerra – isso fica muito claro nos casos das Guerras Médicas e na Guerra do Peloponeso. As implicações econômicas, embora importantíssimas e recorrentes, ocupavam lugar secundário. Enfim, como afirmam Austin e Vidal-Naquet, “pode-se dizer que, na Grécia, se atingirá amiúde o econômico através da guerra, ao passo que não se poderia afirmar que se atinge a guerra através do econômico” (1986, p. 27).

Bibliografia
AUSTIN, M. & VIDAL-NAQUET, P. Economia e Sociedade na Grécia Antiga. Lisboa: Edições 70, 1986.
FINLEY, M.I. Os Gregos Antigos. Lisboa: Edições 70, 2002.
ROSTOVTZEFF, M. História da Grécia. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

Fonte histórica
TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Tradução: Mário da Gama Cury. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001.

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Heloísa Vidal nasceu em São Paulo e faz parte do grupo de Educação Básica para Membros do RHB. É graduanda em História na Universidade Federal de São Paulo, com ênfase em História Antiga, atuando principalmente nos temas associados à Bretanha Romana. Participa do grupo Reconstrucionismo Helênico no Brasil desde 2014.

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